sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Minhas histórias e a primeira pessoa

Minhas histórias e a primeira pessoa

          Percebo que é necessário entregar, largar, fechar, dar por encerradas minhas histórias tristes, rancorosas, vingativas, ressentidas, para que elas não permaneçam reverberando e se repetindo em infinitas variações por onde eu for. É necessário que eu abra espaços internos para viver novas histórias. Por isso vejo como necessário abrir mão das paixões pelas minhas histórias antigas. Entendo que “culpa” e “condenação” são “ancoras” que não me permitem abandonar uma história antiga. Vejo “culpa” como uma espécie de paixão, um apaixonar-se por uma história vivida, no caso, má. Condenação é, para mim, a perpetuação de uma história, minha ou do outro, tanto faz, o prejuízo é o mesmo.

          É necessário que eu deseje ter espaço para viver NOVAS histórias. Por isso é importante encontrar, por exemplo, algum tipo de ação que permita um desapego das velhas histórias, para que estas possam ir, e deixar espaço para a vivência de novas histórias. É fundamental desapaixonar-me das histórias antigas, tanto as minhas como a dos outros. Liberar-me de minhas histórias me permite liberar os outros das suas, assim como soltar as histórias dos outros me libera das minhas. As garras congelam a vida. Abster-me de opinar, aconselhar, julgar é liberar o outro e liberar-me da história do outro.

          Às vezes não consigo soltar umas histórias (minhas ou de outros). Suas histórias fazem reverberar minhas historias. Deixo de perceber o outro como outro. Deve ser porque ainda não as integrei totalmente. Ainda não as transformei em algo essencial, em “adubo de vida”.

          Um exercício que tento constantemente é não ficar repetindo para os outros as histórias que me aconteceram, para que eu possa estar aqui, presente, o mais vazio possível, para que eu não fique “gordo” de minhas histórias, para que esta gordura (paixão) não me suba aos ouvidos e me impeça de escutar os outros, me impregne as articulações e não me deixe mover livremente. O desejo que cultivo é o de estar presente, de estar aqui, agora, “magro” de histórias.  Será isso o “colesterol” que impregna os adultos? Há histórias que abrem oportunidades para viver outras histórias e há umas que fecham as possibilidades de viver novas.

        É como armazenar um colesterol ruim e um bom. Umas histórias lubrificam os caminhos enquanto outras impedem o caminhar, o fluxo do sangue, da vida.

        Querer espaços, para viver novas histórias, é fundamental. É o começo da minha “cura”.

        O que quero fazer com minhas histórias? Como deixar ir? Entra o verbo, já cantado em prosa e verso: Perdoar. Perdonare, pardoneé, forgive, etc. que em todas as línguas contém o verbo dar, doar ou deixar ir.

       Um excelente exercício é perceber como me posto diante do outro: se quero me dar uma chance de mudar, esta chance se estabelece quando me abro ao outro. Vejo a importância de, a cada vez, ver o outro com os olhos limpos, como se o visse pela primeira vez. Só mudo quando mudo minha visão do mundo, e os outros são uma parte viva do mundo que me envolve. São expressões de mim
       Posso começar por mim: olho para mim com este mesmo olhar, o olhar de me ver sem o “já sei”, “já conheço”, “já sei o que esperar”. Esta postura me permite ver e sentir como uma criança (sem colesterol), sem julgamento e, sobretudo, sem condenação.

       Falar na primeira pessoa é também um passo para liberar-me da minha velha história. Quando falo envolvendo outras pessoas (‘a gente’, ‘você’, ‘as pessoas’, etc.) “ancoro”, “engorduro” minha história nos outros, e acabo me escravizando à minha história, aumento o peso da minha história, e desta maneira dificulto minha transformação. Dificulto também que os outros escutem minha história sem julgamento, porque os arrasto para dentro de minha história, criando em quem ouve ponderações e comentários internos com relação ao que estou expondo. Desta forma impeço que escutem minha história. Pior, impeço que eu mesmo escute minha história para que finalmente eu a largue. Só posso me liberar de minhas histórias quando assumir que são minhas, que sou eu que as estou mantendo, ninguém mais.




Falar na primeira pessoa, a partir do que vivi, da minha experiência, do que vejo, do que intuo, do que penso, é minha contribuição ao mundo quando me expresso.
Quando digo: a gente..., as pessoas..., o ser humano..., aí você..., etc., estou de certa maneira anulando o outro. Impondo uma descrição da realidade à todos. Estou, portanto, reduzindo meu universo.
Estou desta forma anulando a contribuição dos outros para a Visão maior, para a visão mais total. Para a percepção maior.

Há, por um lado, uma verdade em falar: nós, a gente, o ser humano, as pessoas, etc. É a intuição de que em um nível somos Um. Somos uma unidade, mas por outro lado, como somos todos parte do “Um”, o que faço, ao falar envolvendo outros, é abolir as outras partes do Todo, deste “Um” (que inclui os outros) que sou eu, estou diminuindo o, espaço de minha consciência. Reduzindo-a. Assim não permito que “outras partes de mim” possam vir me ajudar.

 

Um Outro Olhar

                                                   Um outro olhar

Muitas vezes nos sentimos ridículos por “não saber”, por “não entender”, ou por não saber fazer direito alguma ação que nos é proposta. Sentimo-nos constrangidos, amargurados e tratamos de escapar da situação com desculpas de “agora não estou disponível”, outro dia quem sabe?”, ou mesmo críticas do tipo: “para que isto?”/ “qual o propósito desta proposta”?/ “Para que serve?” “A que isto leva?” ou outras formas de crítica.
Toda situação “nova” é vista, em geral, como desagradável, como questionadora de nossa capacidade e, portanto, tratamos de fugir da melhor maneira possível.
Ao diagnosticarmos que o que está sendo proposto não faz parte de nosso cotidiano e, conseqüentemente, não temos a destreza para realiza-lo, nos sentimos expostos, frágeis e vulneráveis.
Diversas situações novas são evitadas, ou seja, se por um lado enunciamos entusiasticamente o desejo do novo, por outro o tememos, pois ele traz uma exigência de mudanças, e passamos a encarar muito frequentemente o novo como um exame, uma prova de nossas capacidades, de nossas habilidades, nossos saberes.
Não estamos humildemente abertos á experiências novas, sobretudo a partir de determinada idade.
Expor-nos e mostrar um desajeitamento, um “não saber” muitas vezes tem o sabor de derrota. Estaremos sujeitos á criticas e classificações.
A experiência do novo passa a ser uma experiência angustiante. Passamos a querer transformar o novo em algo parecido com alguma coisa já conhecida, para poder lidar com ela.
Caímos sempre no medo, e medo já foi definido como o oposto do amor.
Se por outro lado compreendermos, ou interpretarmos a experiência nova como uma oportunidade de crescimento, de ampliação de nossas possibilidades (e percebermos que a nível fisiológico serão novas sinapses em construção), estaremos dando um passo em direção a ampliação de nosso repertório de respostas á vida. Uma chance maior de exercer mais plenamente o amor, a inteligência e a energia que somos.

A DANÇA NOSSA DE CADA DIA NOS DAI, HOJE  !
                                               
             Faço aqui um convite a observarmos os indivíduos de maneira geral em sua expressão cotidiana, em seu assim chamado “jeito de ser “ - olhares, gestos, posturas, ritmos, forma de andar, respirar, falar e assim por diante. É possível traduzir esta expressão humana numa espécie de melodia; uma melodia que cada um de nós carrega consigo em forma de uma “dança” particular, própria, através da qual somos muito mais reconhecidos do que por nossos traços anatômicos. Este reconhecimento se dá certamente com mais clareza pelos que nos cercam do que por nós mesmos, é assim... Este “jeito de ser” é, em outros termos, a expressão de nossa psique, revelam os esforços de administrar os anseios da alma. É uma forma concreta, tangível de “ver”, “ouvir” e “tocar” o interior de cada um.

Nossos olhos são contemplados diariamente por “danças” como a dança do  “bonzinho”, a dança do “arrogante”, do “ lamentador”, do “irado”, do “sedutor” e por aí vai. Podemos mesmo estender a observação a grupos inteiros, deleitando-nos com as danças dos advogados, políticos, médicos,  professores, cada um com sua melodia. Há ainda a dos jovens, a dos velhos, dos motoqueiros, dos punks e “patricinhas”, enfim divirtam-se...É inevitável, estamos todos dançando. Na nossa grande maioria, ouvindo velhas e repetidas melodias que habitam nosso interior. Isto seria apenas divertido, se tivéssemos consciência deste evento e pudéssemos optar por dança-las ou não, mas é obvio que não é este o caso. Estamos todos adormecidos e impregnados pela inércia do  cotidiano. A esta altura é interessante ressaltar dois pontos. O primeiro, que os dançarinos profissionais estão tão sujeitos a inconsciência quanto qualquer indivíduo ou grupo profissional, e  o  segundo é a exceção a regra, que são as crianças (até por volta dos sete), em geral maravilhosos dançarinos. São capazes de transitar livremente por uma multiplicidade de ritmos e melodias com grande desenvoltura.
 Existem no entanto alguns raros momentos quando, por um motivo extraordinário, somos arrancados da monotonia de nossas bolorentas melodias e suas respectivas danças e... despertamos. Isto pode se dar as vezes por uma paixão, as vezes por uma desgraça, um grande medo, infinita alegria, ou mesmo inexplicavelmente. Nestes preciosos instantes somos transformados em dançarinos de uma ou várias melodias novas, momentaneamente escutamos a Melodia  Presente, a melodia que está nos envolvendo de fato, fora ou dentro de nós mesmos. Por algum tempo, neste estado tornamo-nos estranhos, diferentes, irreconhecíveis. Neste estado mudamos nossos gestos, olhares, tons de voz, nosso ritmo, respiração e consequentemente vemos o mundo com outros olhos, ganhamos algo novo. Parece ser algo ansiosamente desejado: mudar. Mas quantos de nós carregamos lá dentro o desejo de “que as coisas mudem mas que tudo continue da mesma forma”? Não queremos perder nada, e sobre tudo, não queremos perder o controle das coisas e de nós mesmos. São portanto estes momentos extraordinários, evitados e temidos, também pelo fato de que aprendemos a nos identificar e reconhecer através das sensações, sentimentos e pensamentos proporcionados pelo conhecido e repetido.
O mundo, ironicamente, atravessa um momento peculiar, em que todas as circunstancias, econômicas, ideológicas, sociais e institucionais, parecem conspirar para derrubar-nos de nossas posturas e melodias costumeiras e das danças que já sabemos dançar. Nos damos conta estupefatos de que muitas de nossas danças não servem mais. Mas nossa inércia é ditadora, e brigamos para fazer tudo voltar ao que era antes ou, na impossibilidade de volta, nos faz querer encontrar uma nova dança, e rapidamente fixá-la. Queremos “a solução” para podermos adormecer deitados em seus braços até...o próximo despertar.
             É possível viver desta maneira,  ao sabor  da chegada e partida destes momentos extraordinários. É assim que tem sido, assim viveram nossos pais e avós, assim construiu-se nossa história, e temos como certa  e inevitável esta maneira de viver.
 Podemos no entanto desejar outra coisa: deixarmos de ser autômatos e tornarmo-nos dançarinos. Significa desejarmos estar despertos, significa desenvolvermos uma atenção maior, uma permeabilidade e flexibilidade maiores, uma capacidade de pensar, sentir e agir mais integradas, deixarmo-nos surpreender conosco mesmos. Adquirir principalmente uma capacidade de ouvir a melodia presente. Ter o corpo físico e a psique aptos a dançar novas danças. Significa neste caso admitir que temos sido prisioneiros de nossas melodias e danças e desejar encontrar alguma saída, e encontrar saídas requer sempre saber aonde estamos. Além disto é preciso lutar contra a tentação do sono, de cairmos na repetição mecânica de nossas danças, portanto  é necessário que nos associemos a outras pessoas que partilhem do mesmo desejo de  manter-se desperto. Quando um adormecer, o outro, que estiver mais desperto, poderá nos acordar dizendo talvez: “Olha você não está ouvindo a melodia presente, você está  dançando algum eco do passado”. É um momento delicado que muitas vezes nos enfurece, e que nos incita a apelar para todas as justificações de que “não é bem assim”. Portanto requer paciência e pessoas em quem confiar. Em suma, significa desejar, e aceitar, ser tirado para dançar com a Vida.
Podemos contemplar o fenômeno da dança como: uma habilidade e ou graciosidade de movimentos; um instrumento de integração social; um acontecimento artístico; um elemento que permite aliviar tensões; uma expressão folclórica; ou mesmo um elemento religioso (de religação); todos eles circunscritos a momentos especiais. No entanto, vejo a dança como algo a ser conjugado cotidianamente com todas as nossas células. Creio que a Dança é o propósito último humano, e expressão de sabedoria: Poder estar presente diante de cada momento, reverencia-lo porque único, escuta-lo e, na condição magnífica de ser humano, dança-lo ... Amém.


                                                                                                  Michel Robim 
                                                                                         Terapeuta Psico Corporal